segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Razão e loucura: Apolo e Dionísio na mitologia Grega

Pode existir a razão sem sua antítese, a loucura? Que semelhança pode haver entre as nossas preocupações contemporâneas de estabelecer uma fronteira entre são e insano, normal e louco, racional e irracional, e as narrativas mitológicas gregas do século VI a. C.?

Os antigos gregos já se preocupavam com as mesmas questões nós, contemporâneos, e à sua maneira, procuraram fornecer respostas que nortearam a visão e os valores herdados por nós. Como os antigos gregos poderiam nos ajudar a compreender a origem de nosso pensamento sobre as relações entre a racionalidade e a loucura?  A mitologia, o estudo das narrativas mitológicas, ou mais especificamente das relações entre os deuses Apolo e Dionísio, podem ajudar-nos a compreender melhor estas questões. Quem eram eles?

Apolo e Dionísio eram irmãos, ambos filhos do mesmo pai: Zeus. E as semelhanças encerram por aqui. Convido o leitor a conhecer um pouquinho de cada um desses deuses tão distintos e assim compreender como a tradição mitológica grega abordou a separação entre razão e emoção, racionalidade e loucura, e qual o seu legado para nós em pleno século XXI.

Apolo:  a sábia razão

Apolo era o deus da beleza, da perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da razão. Essa perfeição não era alcançada a não ser equilibrando forças opostas: a doença e a cura, o castigo e a proteção. Porém, não se iluda. Dizer que Apolo era o deus da harmonia e da perfeição não significa que fosse um deus benevolente. O conceito de deus bondoso e benevolente simplesmente não existia entre os antigos gregos. Os deuses da mitologia grega, à semelhança dos seres humanos, eram caprichosos, possuindo vícios e qualidades.

Apolo, poderoso e caprichoso, era temido por deuses e homens, e sua ira só podia ser aplacada por seu pai e sua mãe. Ao mesmo tempo que era o deus das pragas e das doenças, era o deus das curas e da proteção contra os males da natureza. A tradição mitológica conferiu-lhe um caráter civilizador por excelência, uma vez que sua violência foi apresentada como necessária dentro do universo para estruturar o cosmos a partir do caos.

Apolo era também o deus dos sonhos. Essa necessidade dos gregos pela experiência onírica atribui a Apolo o seu caráter divinatório. Não é à toa que lhe foi conferido o título de patrono do Oráculo de Delfos. Quem já não ouviu a famosa frase que estava gravada no pórtico de entrada do Templo de Delfos  – “Conhece a ti mesmo” ?

Estaria então a imagem de Apolo ligada a uma verdade universal superior somente passível de ser acessada através da experiência onírica, pois era através dos sonhos que as grandes verdades eram reveladas.
Apolo representava a iluminação fornecida pela sabedoria e, mesmo estando colérico e  mal-humorado, era a personificação da beleza (beleza física e de caráter). Ser belo para os gregos significava ser bom, já diz a expressão kalói kaí agathói (“os belos e os bons”) que posteriormente foi conferida aos arístoi (os aristocratas).

Dionísio: a louca emoção

Dionísio era o deus dos ciclos vitais, da alternância entre as estações do ano, das relações entre corpo e alma, da mescla entre o divino e o profano, das emoções descontroladas, da transgressão à ordem estabelecida, da embriaguez e das orgias.  Era o deus das festas, do vinho, da intoxicação que funde o bebedor profano ao âmago de seus sentimentos mais nobres.  Extremamente intenso, era visto com desconfiança pelos seus pares por seu caráter mundano, desregrado, ligado às tais loucuras da natureza humana.

Era o deus mais humano de todos, o que melhor representava a natureza humana que, frente às incertezas da vida cotidiana, na maior parte das vezes incompreensível, entregava-se aos vícios.  Regia a intensidade das paixões irrefreáveis que podia compreender a pureza e a beleza do Olimpo mesclada ao aspecto sombrio dos sofrimentos humanos.

Dionísio é visto como um desregrado, como um depravado, pelos demais deuses e inclusive pelos homens.  Porém, diferente de Apolo que via os homens a partir de uma perspectiva superior e distanciada, Dionísio estava entre eles, experimentando suas alegrias e padecendo seus sofrimentos.

Dionísio é comumente retratado na companhia de sátiros, centauros, ninfas, e mênades – mulheres levadas à loucura, intoxicadas  e violentas, que vagavam à noite pelas montanhas participando de atividades ritualísticas. O culto a Dionísio, os chamados Mistérios Dionisíacos, implicavam no uso de vinho para induzir transes e erradicar as inibições. O culto dionisíaco teve grande aceitação entre todos aqueles grupos que estavam à margem da sociedade: estrangeiros, foras da lei, escravos e mulheres.

Opostos ou complementares?

Apolo era o deus dos sonhos, do objetivo e do planejamento. Dionísio era o deus das intoxicações, das incertezas cotidianas, da existência efêmera, isto é, do que é finito, da própria mortalidade da existência humana. Ambos eram protótipos originais de toda a arte, de todas as formas de arte…

Apolo e Dionísio eram considerados manifestações distintas da mesma divindade. Apolo era a imagem do iniciado que estuda a natureza através da ciência (logos), símbolo da passagem da infância à vida adulta, a imagem do educador ideal, representante do sistema educacional grego (a paideia). Sua função era elevar a alma à esfera da verdade e à luz da razão.  Era signo da individualização, da constituição da personalidade no processo de formação do indivíduo. Dionísio, ao contrário, representava a fusão no outro, a submersão da sua identidade na identidade do outro, demonstrada no teatro pelo uso de máscaras (que esconde os rostos dos atores) e o uso do coro (que não permite distinguir uma voz de outra) onde cada um é apenas uma parte do todo.

O valor dos sonhos de Apolo consistia em definir o homem esteticamente sensível como um observador da vida, pois as imagens vistas em sonhos consistiam em si mesmas interpretações da vida. O sonho além de ser um prazer intenso era uma necessidade da vida, para compreender a própria vida.

O valor do caos de Dionísio:  o deus personificava a desordem irracional da existência humana, sua vitalidade, instabilidade e fugacidade, que consistiam em motores de propulsão dos sonhos apolíneos. Estes deveriam ser organizados para se tornarem compreensíveis e transmissíveis através do poder articulador e discursivo de Apolo.

O encontro de Apolo e Dionísio

A polaridade Apolo-Dionísio foi portanto associada às polaridades entre a ordem e a desordem universal, entre a razão organizadora e a loucura desregrada, entre o equilíbrio do pensamento e a instabilidade das emoções. A oposição entre Apolo e Dionísio consiste na dicotomia fundadora da compreensão moderna da psique humana, que ora é regida pelos impulsos racionais (apolíneos), ora pelos impulsos sexuais (dionisíacos). A expressão dessa polaridade alcança inclusive o domínio das artes: a arte apolínea é mais figurativa e clássica, a arte dionisíaca é mais poética e sensual.
Apolo é a ordem que brota do caos, que orienta o movimento dos planetas de acordo com os planos  divinos, que confere razão e sentido a cada uma das dimensões da existência. É o cuidado rígido e necessário para uma vida saudável. É hierarquia.

Dionísio é o caos que implode toda a ordem universal e relembra que nenhuma ordem é permanente, que a existência é efêmera, que tudo o que resta são momentos que devem ser vividos com espontaneidade e passionalidade. Não havendo garantia de estabilidade, aplaca o sofrimento com os vícios. É rebeldia.

Tão opostas são estas duas realidades quanto complementares. Apolo sonha, planeja, executa com uma rigidez que pode aniquilar a si mesmo.  Dionísio se intoxica, abandona-se ao caos existencial carecendo da ordem necessária para dar forma à sua inspiração. Ora alegre, ora sofredor, sua instabilidade o aniquila.

Levados às últimas consequências, cada uma dessas dimensões da psique humana tende a se implodir. Unidos, porém, Apolo e Dionísio explodem em um forte impacto inicial, um misto de  estranhamento e curiosidade um pelo outro, para então se fundirem e encontrarem o equilíbrio necessário à continuidade da existência.

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